A
meu ver, uma das provas de que Deus existe é a profissão de médico-legista. Não
encontro explicação racional para o fato de alguém se sentir atraído por tal ofício,
isto é, para ter um gosto tão oposto ao meu. Poderia citar outras profissões ou
atividades. Esse é apenas um exemplo. Certamente, para outros, a existência dos
advogados somente pode ter explicação divina, tal é a repulsa que sentem pelo ofício
de lidar com as leis.
Como
explicar a existência dos goleiros, uma vez que os atacantes têm muito maior
visibilidade? Como entender os bateristas, se vocalistas e guitarristas possuem
maior evidência? Há maior recompensa material ou moral para certas funções, o
que me leva a crer nos talentos inatos harmonicamente distribuídos. No mundo
parece haver uma certa ordem, de modo que, se não houvessem as distorções do
mercado e as pressões dos pais, tudo leva a crer, haveria grande equilíbrio e
adequada distribuição de profissões e atividades. Com um detalhe: ninguém é
médico para tratar as próprias doenças, dentista para cuidar das próprias
cáries, lixeiro para levar o próprio lixo. Cada um de nós existe para os
outros. E, creio, cada um dos outros existe também para nós.
Estou
plenamente convencido de que se todos os homens fossem sinceros consigo mesmos,
seguindo sua real vocação, suas verdadeiras aptidões, poder-se-ia verificar que
a natureza sempre produziu harmoniosa correspondência entre dons e
necessidades. O problema é que há desvios de rota. Quantos indivíduos, por
exemplo, não tiveram de renunciar aos próprios destinos, às próprias escolhas,
para realizar loucos desejos dos pais? Sim, loucos desejos, pois os genitores
não são proprietários dos talentos e vocações dos filhos. Não são donos do
sentido da existência dos filhos. Não lhes possuem os destinos. A ninguém é
dado curar suas frustrações impondo frustrações aos outros, suicidando o
sentido da existência dos outros. E é também por isso que o aborto se reveste
de especial gravidade: o aniquilamento do sentido da existência do nascituro.
Há
quem diga que a vida não tem sentido. Isso não é verdade. Até a morte tem
sentido. O que existe em superabundância são os cegos, cegos para o sentido.
Detectar a razão da existência exige uma certa habilidade, um certo treino. O mesmo
se dá com a existência de Deus. Há quem diga que Deus não existe. Mas as provas
da existência de Deus são a todo o momento esfregadas na nossa cara. O que há
saindo pelos ladrões são os cegos que não sabem ler braile.
Diz-se
que os cegos, por lhes faltar a visão, desenvolvem mais os outros sentidos. Com
o homem moderno dá-se algo inverso. Por embrenhar-se demais nos toques, nos
esbarros com a matéria, por afligir-se com o presente do dia dos namorados, com
a perda do emprego, com o carro do ano, sofre terrível e angustiante atrofia de
uma capacidade interior, da sua sensibilidade para o invisível e intangível,
para o que está além do toque, além do tato e da vista.
De
uma certa maneira, pode-se dizer que, para encontrar o sentido da vida ou mesmo
as provas da existência de Deus, é preciso aprender a ler em braile. Trata-se
de um outro tipo de leitura, de uma outra espécie de sensibilidade, de uma
percepção de diversa natureza. O modo pelo qual estamos acostumados a conhecer,
sobretudo nesses tempos encharcados de materialismo, é impróprio, é
insuficiente, é inadequado para nos levar à apreensão de realidades
metafísicas. Não por acaso há quem diga que a metafísica morreu. Mas não se
aprende o que é amor pelo dicionário. Há uma espécie de sentido interno que nos
mostra o que é o elo que une os amantes.
Às vezes, é o
sofrimento quem inicia o processo de alfabetização. Viktor Emil Frankl, um
grande homem do nosso tempo, provou o campo de concentração nazista e comprovou
que há sentido na vida até mesmo ali. E mais: há um sentido específico para
cada momento, para cada ato, para cada segundo e instante, e não apenas um
sentido geral e abstrato para tudo. Intuiu ele que esse sentido está ligado a
dois fatores: liberdade e responsabilidade. Sim, porque somos livres para tomar
decisões sem sentido. Somos livres. Mas também somos responsáveis. Decisões sem
sentido têm consequências, às vezes, catastróficas. Geram vazio existencial e
toda uma série de frustrações. Mas é possível dar sentido mesmo aos erros e retificar
a rota.
Dostoiévski
esteve também à beira da morte, diante do pelotão de fuzilamento, condenado por
traição. Conta-se que ele já tinha dividido mentalmente os poucos minutos que
lhe restavam, para despedir-se dos companheiros. Tantos segundos para despedir-se
deste, tantos segundos para despedir-se daquele. E, no entanto, no derradeiro
instante, já no lugar da execução, a pena capital que lhe seria imposta foi
comutada em quatro anos de trabalhos forçados. Em um de seus livros, Viktor
Frankl cita uma frase do autor russo: “de uma só coisa eu tenho medo: não ser
digno dos meus tormentos”. Sim, o autor de “Memórias do subsolo” enxergou um
sentido a realizar diante dos seus tormentos.
O
caro leitor deve saber que Beethoven quase nos privou de algumas de suas obras.
Percebendo a surdez avançando e após desilusões amorosas, resolveu dar cabo da
própria vida. Mas, misteriosamente – talvez tenha pedido auxílio aos céus, aos
anjos e aos santos –, acabou vencendo o desespero e ofereceu à humanidade um
exemplo quase sobre-humano de superação: compôs aquele glorioso edifício, a sua
última e mais majestosa sinfonia, encontrando-se já completamente surdo. Ao
invés de se deixar subjugar pela adversidade, ele resolveu “agarrar o destino
pela garganta”, segundo suas próprias palavras.
Gostaria
que o meu texto de hoje pudesse ser considerado como uma carta, uma missiva com
endereço certo, uma mensagem a um leitor ateu. Gostaria de alertá-lo da sua
cegueira e da necessidade de aprender a ler braile. Certos desenvolvimentos
dão-se à custa de atrofias. Há uma espécie de visão interior que lê além do
visível, que toca além do tato. De fato, é um tipo de visão, mais verdadeira e muito
mais potente. Mas diz respeito a um outro alfabeto e a um outro tipo de idioma.
Requer critérios outros, diversa habilidade, outro tipo de instrumentos. E já é
um bom começo saber que essa capacidade existe.
Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo
Horizonte
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