Aquele a quem Santo Tomás de Aquino denominava apenas “O Filósofo” [Aristóteles] escreveu, mais de três séculos antes de Jesus nascer que “Os desejos naturais nada mais são do que uma inclinação inerente às coisas devido à ordenação do primeiro movente [primeiro movente = Deus], a qual [ordenação] não pode ser frustrada” (“Ética a Nicômaco”). Jesus, mais de três séculos depois dele, introduziu o mandamento “Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito.” (Mt. 5, 48) O Filósofo falava do homem natural; Nosso Senhor, do novo homem que iria nascer tão logo o Reino dos céus, a Igreja, fosse criada.
Deus criou a Natureza que, no ensinamento do Filósofo, nada faz em vão, sendo somente agindo contra a natureza que o homem deseja e pratica o que é imoral e desonesto e se mantém em tais práticas, o que é visível até entre os animais. Por exemplo, os carnívoros, como o leão, a cada 3 ou 4 dias, ataca furiosamente e devora sua presa quando está faminto. Alimentado e satisfeito, sua presa natural pode passear perto dele que ele nem liga.
Com o homem as coisas se dão de maneira diferente, porque ele possui vocação e os animais não. Ora, vocação é “chamamento”; portanto, trata-se de algo que presume no mínimo dois indivíduos, um que chama e outro que escuta e atende (ou não) ao chamado; além disso, presume também um vínculo entre ambos, o qual vínculo é o amor de quem chama. A vocação do homem é o chamamento dele por Deus a uma vida de felicidade que não acaba. Na condição de vida natural, o homem experimenta o forte desejo de atingir tal felicidade; na vida sobrenatural, experimenta um pouco dessa felicidade; na bem-aventurança, desfruta-a plena e definitivamente.
Mas o homem é o que é; ele é criatura inteligente dotada de corpo que muda com o tempo e as circunstâncias. Seu corpo mudando, sua imaginação muda, como ocorre quando fica com febre: a bebida e a comida perdem o gosto. Ora, se a comida e a bebida perdem o gosto, por causa da febre, enquanto o indivíduo permanecer nesse estado não conseguirá se imaginar desfrutando tais prazeres, justamente porque a imaginação, deixada às custas somente da natureza, muda tão rápido quanto o corpo.
Como, então, perceber que há mais razão e verdade nas palavras de Nosso Senhor do que nas do grande Filósofo? Nosso Senhor ordenou “Sede perfeitos...” e deu como critério de perfeição o próprio Pai... “como vosso Pai celeste é perfeito”. Se o Filósofo concluía certo depois de muito observar e refletir sobre a natureza das coisas, com mais veracidade procede o Verbo de Deus, através do qual todas as coisas foram feitas.
Na ordem de que sejamos perfeitos, está presente o saber exato de Jesus a respeito das nossas fraquezas, da nossa susceptibilidade a mudar de idéia conforme as circunstâncias (familiares, profissionais, sociais...) mudem. Então, quis Nosso Senhor pôr na terra o Reino dos céus entre nós e nós dentro dele, de modo que tivéssemos à distância da mãe os meios seguros e infalíveis necessários para cumprir o seu mandamento de perfeição. Para tanto, providenciou que tivéssemos sempre, até o fim do mundo, a prova de que isso é possível: fez com que o Reino dos céus se mantivesse como um permanente “fornecedor” de exemplos de obediência a Seu mandamento de perfeição. Esses exemplos são os santos, cujas vidas acompanham-se dos milagres que somente a fé, a esperança e a caridade podem ocasionar. Tais exemplos são lembranças e provas vivas daquilo que afirmamos crer todo dia quando rezamos o Terço: “Creio... na Santa Igreja Católica...” que é una, santa e indivisível. É visível sua unidade porque todos os santos o são por causa dela; é santa porque só a ela Deus deu a custódia dos infalíveis instrumentos de salvação; indivisível porque as potências do inferno, que são poderes infinitamente maiores do que todo o cosmos visível, nada podem contra ela. Por isso ela nos dá, nos mostra os santos, homens e mulheres que, com suas vidas, fazem uma descrição pormenorizada não somente da vocação particular de cada um mas também dos percalços por que passaram para serem fiéis à vocação à santidade própria daqueles que interessam a Deus colocar dentro do Seu reino.
O primeiro e mais forte exemplo de aceitação da vocação creio vê-lo na Sagrada Família. Jesus, Nosso Senhor, esclarece: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra” (Jo 4, 34), o substantivo alimento podendo também ser entendido como “vocação”. Porque o critério que Ele estabelece para que alguém entre no Reino dos céus e se converta em seu irmão, pai e mãe, é “fazer a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mat 7, 21). Mas enquanto homem Ele foi precedido tanto por Sua Mãe quanto pelo seu custódio São José, pois Maria disse “fiat”, o mesmo tendo feito José ao saber que o que se passava com ela era obra de Deus. Jesus, Maria e José foram fiéis à vocação de fazer a vontade do Pai que está no céu, certamente porque o convívio com Jesus os aperfeiçoou.
Mas seria muito difícil para os que nEle ainda iriam crer seguir o tão perfeito exemplo da Sagrada família. Amor puro que é, Jesus providenciou que a Igreja, o Reino dos céus na terra, forneceria alimento permanente à nossa imaginação e inteligência, e também “explicações” vivas de uso reto e honesto da vontade. Deste modo ajudaria aos ingressantes no Reino dos céus a não se conformarem com os próprios defeitos e fraquezas mas, antes, a combatê-los com toda força, assim como fizeram e fazem os santos.
Quanto consolo brota no coração quando o mundo nos sorri e então percebemos toda a sua vacuidade; ou então quando ele nos oprime e sentimos sua falsidade; e neste momento olhamos para o santo que o Reino dos céus forneceu. Como fiz durante esta semana, quando olhei para Santo Agostinho e então reparei algo que nunca até então tinha chamado minha atenção: ele era filho de um lar assaz problemático. Nas palavras de René Fullop Muller (“Os santos que abalaram o mundo”, p. 89), “A vida de Sto. Agostinho... permanece estranhamente problemática...”. Porque ele era filho de um pai “que não levava muito a sério seus votos maritais” (p. 75), exemplo que acabou inclinando-o ao erro. Tanto que, depois de conseguir elevar-se profissional, social e financeiramente (tornou-se protegido do prefeito romano da época, em virtude de seu enorme talento profissional), não passava de um “zero à esquerda”. Disse ele: “Minha miserável e pecaminosa juventude tinha passado e entrei na maturidade. Contudo, quanto mais longe avançava em anos, maior se tornava minha vergonhosa nulidade”. (p. 91).
Quando acompanhamos sua vida, transportando-nos imaginativamente à sua época, à sua pessoa e a seus gostos, e o vemos então renunciar ao pecado e extirpá-lo com precisão cirúrgica de sua vontade (ele, no livro “Confissões”, analisa cada um dos seus sentidos exteriores e interiores e a força maior ou menor que este ou aquele possui para incliná-lo ao pecado), vemos crescer certa força no nosso coração que consola e faz ver que é possível, mesmo nas nossas nulas vidas, cumprir aquele mandamento de Jesus: “sede perfeito...”.
Este ou aquele santo, por suas características pessoais, possui a graça de fazer vibrar em nosso coração o desejo de atender ao chamamento de Deus para Ele através da prática do bem ao próximo. O princípio natural de ciência e amor, capaz de capacitar o homem a isso chama-se vocação, pois a vocação de cada um não é para a própria felicidade, mas para a felicidade do próximo.
Joel Nunes dos Santos, em 30 de julho de 2011.
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