domingo, 1 de maio de 2011

Vocação e Família-III

“São as famílias o lugar onde nascem as vocações” são palavras do Papa Bento XVI que nunca é demais repetir.

Hoje mais do que nunca os pais são indispensáveis para a amorosa tarefa de identificar a vocação das crianças e ajudá-las a crescerem respeitando-a. Caso os pais não façam isso, somente a Providência de Deus pode evitar que se tornem adolescentes confusos e adultos descrentes da vida, resultados comuns naqueles cujas vidas não guarda relação direta com a vocação que Deus lhes deu.

Não é excessivo insistir que os pais devem ser instruídos sobre a enorme importância de saberem identificar a vocação dos próprios filhos, uma vez que há algumas décadas houve enorme mudança no entorno da vida das crianças, o que muito vem dificultando ajudá-las a se desenvolverem da maneira como se deve, isto é, em torno da própria vocação. Para entender tal enorme mudança, ainda que desviando um pouco da questão específica da vocação, vale comentar em que ela consiste. A mudança que houve é a que afetou e vem afetando o escopo moral da vida do homem.

Creio que cada vez é mais claro para todo mundo a grande verdade dita pelo agora beatificado Papa João Paulo II, que as leis dos Estados modernos têm sido feitas para que o homem, obedecendo-as, pequem. Não lembro exatamente quais foram suas exatas palavras, mas o sentido é este: as leis civis estão afirmando uma espécie de “dever” de pecar.

No Brasil, a meu ver, isto tem ocorrido à vista de todos sem que haja protesto por parte da população não-católica. Os católicos compreendem essas mudanças, sentem-na com mais agudeza, mas não são acompanhados pelo resto da população, que embora sinta seus efeitos, não atinam com o que de fato está acontecendo. O quadro dessa mudança fica transparente quando o colocamos de fronte do pano-de-fundo da ciência da Ética e distinguimos tal ciência da Moral.

A Ética é a ciência dos costumes, cuja finalidade é ensinar ao homem como fazer o bem e fugir do mal. Fazendo um resumo do resumo: esta ciência foi criada por Aristóteles (e endossada por Santo Tomás de Aquino, doutor da Igreja) do seguinte modo: ao analisar a estrutura da alma humana, viu que ela possui uma parte racional e outra irracional (ou instintiva), além de uma outra parte intermediária entre essas duas, denominada “vontade”. Essas partes da alma, quando devidamente educadas, fazem surgir as virtudes, que na linguagem atual pode ser dita uma força interior (que a psicologia denomina “caráter”) que dota o homem para resistir ao mal e fazer o bem, ainda que a situação seja hostil a uma e outra dessas coisas.

Assim como os animais, o homem possui instintos, denominados “defensivos” e “apropriativos”, os quais são denominados respectivamente “irascível” e “concupiscível”. Do irascível é que resulta a agressividade humana (a “ira”), que deve ser colocada a serviço do bem, para que o homem consiga resistir interiormente ao mal e permaneça aderido ao bem. Do concupiscível é que podem surgir os vícios, ou as “concupiscências”, o desejo imoderado por coisas em si mesmas úteis, honestas e necessárias. Por exemplo, como o ser humano é um animal dotado de alma racional, e precisa alimentar-se, procriar, para manter-se vivo como indivíduo e como espécie. Mas tudo isso tem de ser feito com moderação, sem pecado. Assim, a educação do irascível faz surgir a força para resistir ao mal e persistir no bem e na verdade, ao que se chama “virtude da fortaleza”; a educação do concupiscível faz surgir a força no coração para amar o que deve ser amado e odiar o que deve ser odiado, o que recebe o nome de “virtude da temperança”.

Além dessas duas partes irracionais da alma, há outras duas, a razão e a vontade que, ao serem adequadamente educadas, fazem surgir as virtudes da prudência (que é a razão aplicada à correção das próprias ações) e da justiça (o hábito de não reter nem tomar o que pertence ao outro).

A Ética ensina como o homem deve fazer para ser virtuoso, isto é, ser forte para não recuar do bem e da verdade mesmo em situações de perigo de vida; ser temperante e por isso capaz de amar ao que deve ser amado e odiar ao que deve ser odiado; ser prudente, isto é, deve saber julgar com certa antecipação qual a melhor atitude a tomar nas situações concretas da vida, com quem se associar e de quem se afastar e assim por diante. E deve ser, acima de tudo, justo, não ficando com o que não lhe pertence mas, ao contrário, dando a cada um o que é seu, pois esta é a condição para o homem poder “dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”.

A Ética é a ciência que ensina qual deve ser a direção dos esforços do homem para que se convertam em hábitos saudáveis, e isto é para ser feito através da educação. O nome desta ciência deriva da palavra “ethos”, algo assim como “ambiente cultural que o homem cria”. Mas este conhecimento não é suficiente, pois ele é como os ratos saberem que, para não morrerem, precisam colocar um sininho no pescoço do gato. Deus, em sua infinita Misericórdia e Providência, forneceu previamente solução para a dificuldade de implementação desta ciência: revelou a Moisés as “Tábuas da Lei”, onde explicou “como colocar o sininho no pescoço do gato”. Esta “explicação de Deus como fazer as coisas” é que é a Moral, que significa “costumes”. A Ética é a instrução sobre como educar o homem e torná-lo criatura boa e, para tanto, enfatiza as AÇÕES do homem. A Moral enfatiza, além das AÇÕES do homem, as INTENÇÕES deste mesmo homem, nisto consistindo a diferença específica entre uma e outra. Por isso pode-se dizer que é mais fácil possuir ética do que possuir moral, porque a Ética está para a Moral assim como o cidadão está para a pessoa. Por exemplo, eu, “pessoa”, sou o Joel, de quem minha mulher e filho esperam que além de eu tratá-los bem, que também os ame. Como “cidadão”, sou psicólogo e de mim, enquanto psicólogo, minha mulher e filho não esperam praticamente nada, mas todas as demais pessoas que me conhecem esperam que eu seja pessoa lúcida, correta, não minta para elas, etc. Tais pessoas não esperam que eu as ame como minha mulher e filho esperam, mas que eu as respeite e me comporte de maneira correta com elas. Ou seja, tais pessoas esperam que eu seja “ético”, quer dizer, que eu seja justo com elas, não fazendo com elas aquilo que eu não gostaria que fizessem comigo. Pois o sentido da expressão “ser ético” é o mesmo que “praticar a virtude da justiça, não tomando nem retendo o que ao outro pertence”, uma vez que a virtude da justiça é, das quatro virtudes apontadas (Fortaleza, Temperança, Prudência e Justiça), a única que exige uma outra pessoa, um terceiro ao qual se referir. As outras três só exigem coisas do próprio sujeito para com ele mesmo. Por exemplo, eu tenho de me esforçar (e isto é algo que só depende de mim) para desenvolver a virtude da fortaleza; caso não a desenvolva, posso tornar-me uma pessoa covarde ou uma pessoa temerária. Pois a fortaleza, a temperança, e a prudência são o meio-termo entre dois vícios, entre dois tipos de pecados opostos. Já o meio-termo da justiça não se dá na alma, na vida interior da pessoa, mas em algo externo à pessoa, pois para ser justo é necessário haver pelo menos duas pessoas e uma terceira coisa, um objeto, entre elas.

Pois bem, quando analisamos os 10 mandamentos, nele encontramos a descrição pormenorizada de como ser justo: justo para com Deus e justo para com o próximo, ou seja, aprendemos de que maneira podemos exercitar o amor a Deus e ao próximo. Vejamos como é isso.

Os 3 primeiros mandamentos são uma “explicação” de como ser justo com Deus (e ser justo é dar a cada um o que lhe pertence). Eu sou “justo” com Deus quando dou a Ele o que a Ele pertence. Como somente a Ele pertence o direito de ser adorado e a ninguém mais (pois aos santos eu não adoro, mas “venero”, coisa muito diferente). Como manifesto meu amor por Deus? Em primeiro, não antepondo nada nem ninguém antes dele no meu coração, isto é, amando-O sobre todas as coisas (1º. mandamento); em segundo lugar, respeitando este amor, não usando o Seu nome em vão (2º.mandamento); em terceiro lugar, praticando a adoração a Ele, guardando o domingo e dias santos de guarda (3º. mandamento). A estes três primeiros mandamentos denomina-se “Direito divino”, enquanto que aos outros sete, “Direito Natural”. Ora, para eu ser justo e Dar a Deus o que só a Deus pertenço, tenho em primeiro lugar, de amá-Lo. Mas amá-Lo, desejar servi-lo, unir-me a Ele, etc., resulta da educação da parte instintiva da alma denominada “concupiscível”, e tanto é assim que Jesus disse que “não só de pão vive o homem mas de toda palavra que procede da boca de Deus”. Ora, o pão é algo que o homem deseja porque dele tem necessidade, uma vez que pão e comida são sinônimos. E o concupiscível é a parte da alma responsável pelas “atividades apropriativas” do organismo. Portanto, amar a Deus sobre todas as coisas é o fruto mais elevado da educação do concupiscível.

Para atender ao segundo e terceiro mandamentos, “Não tomar o nome de Deus em vão” e “Guardar domingos e dias santos de guarda”, é necessário usar da força do instinto de agressividade (denominado irascível): só reagindo contra ou fugindo das seduções do pecado consigo força suficiente para reservar para Deus o Seu dia. Portanto, preciso do meu instinto agressivo para afirmar fisicamente meu dever para com Deus – porque nem a Ética nem a Moral ensinam a suprimir os instintos, mas a fazer uso de suas forças e colocá-las a serviço do bem da alma.

Se nos aplicarmos reflexivamente a cada um dos mandamentos, notaremos que ao cumpri-los estamos realizando em nossa vida cotidiana aquilo que a Ética ensina que o homem deve ser e para tanto insiste na educação das AÇÕES e PAIXÕES humanas, as quais coisas constituem a matéria desta ciência, assim como sua forma são as virtudes. Mas além disso temos de fazer um algo mais: temos de regrar as nossas INTENÇÕES, coisa que a Ética não exige, mas a Moral sim. Portanto, a Moral exige do homem o que a Ética exige mais algo que a Ética não exige: exige do homem a correção de sua intenção. Se a Ética tem por finalidade fazer com que o homem faça a coisa certa, a Moral, além disso, capacita o homem para amar fazer a coisa certa, ou amar fazer o bem e afastar-se do mal.

Quando colocamos lado a lado esses mandamentos por Deus revelado ao homem, com os “mandamentos” que há algumas gerações vêm sendo implantados no Brasil, ficamos abismados. Por exemplo, o 4º. mandamento (“Honrar pai e mãe”), que é o primeiro da Lei Natural vem sendo substituído nas escolas públicas pelo seu contrário: ao invés de pai e mãe, vem-se ensinando às crianças que não somente é possível mas também é desejável haver pai e pai de uma mesma criança, ou então mãe e mãe, nas chamadas “uniões homoafetivas”. O 5º. mandamento (“Não matarás”) é negado e em seu lugar, introduz-se o aborto, ou então a ressalva de que os menores de 18 anos estão isentos de cumpri-los, uma vez que o “menor adolescente” não pode ser julgado como adulto e, portanto, não pode receber a mesma sentença que o adulto no caso de homicídio. E aí se vê que se o mandamento em questão, o 5º, é o segundo e mais excelente resultado da educação do concupiscível (pois o primeiro resultado é o dito acima, relativo aos mandamentos 2 e 3), o Legislador brasileiro caminha pela afirmação do seu contrário, isto é, que não se deve pôr freio no irascível. O sexto mandamento (“Não pecar contra a castidade”), que é o segundo e excelente fruto da educação do concupiscível (o primeiro, amar a Deus sobre todas as coisas) é contraditado em ato pelos últimos governos que distribuem preservativos nas escolas públicas, “pílulas do dia seguinte” e coisas de mesmo gênero. E como com o sexto mandamento combina o nono (o 6º. possuindo uma acepção corporal e o 9º. acepção psicológica, pois manda “Não desejar a mulher do próximo”), as coisas não vão melhor: nas escolas públicas, nas TVs, revistas, rádios e todos os meios de comunicação, ensina-se que deve-se, sim, pecar fisica e psicologicamente contra a castidade.

Pois bem. Num ambiente familiar e social onde as “Tábuas da Lei” são tomadas como a base da instrução moral, como é dever do católico fazer na própria casa, com poucas explicações é possível instruir aos pais como reconhecerem e ajudarem ao atendimento da vocação das suas crianças. Mas num ambiente onde não impera o amor mas progressivamente vai imperando o descontrole do irascível e do concupiscível, onde a liberdade se confunde com capricho e libertinagem, o sadio amor entre pessoas em impulsos cheios de luxúria, então a vista fica ofuscada e a vocação tende a ser progressivamente ignorada. E então a criança com vocação filosófica infelicita a vida porque ela aprenderá a usar este dom de Deus não apegado ao desejo de conhecer a verdade, mas ao de manipular ao próximo; a com vocação artística, a “seduzir” o próximo e não a encantá-lo com a boa arte, aquela que torna mais agradável aos sentidos a enunciação da verdade, e assim por diante.

Que Deus livre a nossa criança e juventude da “tábua dos anti-mandamentos”.

Joel Nunes dos Santos, em 30 de abril de 2011.

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