domingo, 13 de março de 2011

Vocação Contra o Desperdício

Uma das primeiras coisas a ser reparada no postulante à vida religiosa é saber se ele possui vocação para ela. Caso não, ele é dispensado para que não desperdice o próprio tempo e dos outros, regra válida para todo mundo que, infelizmente, nem todos levam em conta. Ao fazer uma escolha, a primeira pergunta deveria ser “Tenho vocação para isso?”. Se a resposta for positiva, então a pessoa fará bem em continuar esforçando-se para progredir na atividade escolhida. Se for negativa, ela fará muito bem manter-se nesta atividade somente durante o tempo necessário para encaixar-se em outra que combine com sua vocação. Por exemplo, a pessoa passa num concurso público para trabalho em atividade burocrática, mas não possui vocação compatível com Contabilidade, Direito, etc. O sensato seria ela aproveitar as condições favoráveis do emprego, onde pode trabalhar poucas horas por dia, e no restante do tempo adquirir formação compatível com sua vocação, de modo que se desligue de uma atividade e se ligue a outra sem precisar fazer isso tempestivamente e de maneira precipitada e imprudente. Assim fazendo, evitará desperdiçar o tempo próprio e alheio com coisas sem sentido.


Não é só no período escolar, quando o jovem se vê na situação de ter de escolher algum curso universitário, ou quando, mais tarde, lança-se à busca de algum trabalho, que importa fazer esta pergunta. O jovem, o adulto, o solteiro, o casado, o postulante à vida religiosa... todo mundo deveria fazer-se a mesma pergunta, pois aquilo para que somos vocacionados é o trunfo que possuímos para resolver problemas – e também para causa-los, quando então deixa de ser trunfo.


Vivemos numa época em que a Economia passou a tomar conta de praticamente toda a vida, até naqueles aspectos antes reservados para a vida religiosa. No passado, quando se pensava em ter filhos, pensava-se no dever de fazer isso para agradar a Deus e especulava-se a respeito de que graça o novo ser humano iria dar a conhecer. Hoje em dia, ao pensar em filhos, o espírito fica tomado pelas preocupações de natureza econômica.


A Igreja ensina, com sua doutrina e seu exemplo, a não desprezarmos a vida concreta das pessoas e dos povos. Assim, convém respeitar o valor que as pessoas dão ao tempo e ao dinheiro e ajuda-las a bem administrá-los, de modo que assim fazendo, realizemos a caridade de ser útil ao próximo, ajudando-o a ter uma vida o mais tranquila possível e, em resultado, encontre mais tempo disponível para pensar nas coisas de Deus.

Em consonância com este pensamento, vale a pena destacar quão útil é a meditação na pergunta “Tenho vocação para tal coisa?”, ou “Como minha vocação pode ajudar-me a resolver a dificuldade na qual me encontro?”. Um exemplo tomado da experiência ajuda a esclarecer o valor e a praticidade do conhecimento a que tais perguntas remetem.


Um amigo que há muito não via, telefonou-me: “Joel, preciso de você. Acho que vou precisar nos próximos oito ou dez meses, pois estou com um sério problema. Você poderia vir aqui para conversarmos?” (Moro em SP e ele no RJ). “Claro que sim, respondi. Mas por ora, não gostaria de me contar o que está acontecendo?”


Ele me contou o que pode ser assim resumido: faz algum tempo submete-se a terapia e no diálogo com sua terapeuta chegou à conclusão que vive sabotando a si próprio. Raramente faz alguma coisa que não coloque sob ameaça suas coisas profissionais ou pessoais. Por exemplo, é sócio de negócio bem sucedido, cujo escritório localiza-se no centro da capital em que reside. Cuida da parte logística e administrativa dos negócios, o que exige que vá constantemente a cartórios e bancos, todos próximos do escritório. Porém, deixa para fazer tudo em cima da hora, indo ao cartórios, por exemplo, minutos antes de ele fechar a porta. Essa conduta é a mesma nos demais setores de sua vida, parecendo então sensato concluir que de fato vive de sabotar-se. Assim concluído, em comum acordo com sua terapeuta, seus encontros com ela distendeu-se por anos e prometia prolongar-se bastante tempo.


Meu parecer a seu respeito divergia do dele e da terapeuta, por uma razão: tendo convivido com ele tempo suficiente, conhecia qual era sua vocação e os contornos que ela assumia em sua vida. Baseado em tal conhecimento, ficava evidente que ele de maneira alguma era um sabotador da própria vida, mas alguém cuja vida se organizou de modo que não atendia de maneira suficiente as exigências de sua vocação.


Sua vocação é altruístico-artística, sendo ele pessoa que só se dispõe a fazer as coisas caso entenda que ela atende a interesse direto de alguma outra pessoa e não somente a seus próprios e exclusivos interesses. Por exemplo, ele inventou um dispositivo utilíssimo para músicos guitarristas, desenhou o dispositivo, confeccionou o protótipo e só faltou patenteá-lo, o que não fez por não ter encontrado alguém a quem este invento pudesse favorecer, tanto tecnicamente quanto profissionalmente. Levar adiante o projeto para apenas ele ganhar dinheiro – e o projeto é honesto e economicamente viável – sem que isto beneficie alguma outra pessoa sua conhecida não o motiva nem um pouco.



O aspecto artístico de sua vocação fica evidente por alguns acontecimentos. Quando tinha entre quatro e cinco anos, sua família estava conversando na sala. Ele tomou de um papel e lápis e começou a desenhar o rosto de um dos presentes. Começou desenhando a ponta do nariz, depois o nariz e assim foi até chegar ao rosto inteiro, desenho tão fiel que lembra uma foto. No início da adolescência, conta, assistia a desenhos animados e um que lhe chamava a atenção era os cartoons “Tom & Jerry”: “Havia algumas tardes em que eu dormia para sonhar com esses personagens e dar um tapa no Jerry, no maligno ratinho”. Na sua vida adulta – é advogado – é visível não somente é observável seu elevado senso estético e bom-gosto no trajar-se como também em tudo que faz: nas petições que faz é comum usar de tanta arte que faz com que o juiz trate pelo pré-nome o cliente a quem defende, quando o comum é o juiz dizer “o réu”, “a vítima”, “o constituído”, etc.. Numa palavra, ele consegue fazer com que o juiz humanize o réu, tratando-o não impessoalmente, mas pelo seu nome próprio.


Além disso vale dizer que ele é pessoa que tem necessidade de excitação dos sentidos num grau acima do que se observa na média das pessoas. Tudo que faz parece conter tendência ao exagero. Quando ouve música, quer ouvi-la num volume muito alto; quando come, quer comer quantidade excessiva. Seu hobby durante algum tempo foi corrida de carro, sendo exímio piloto. Desenvolveu o hábito de controlar-se para não engordar ou se tornar pessoa enervante para os circunstantes.


Pois bem, sua vida estava organizada, na época em que me ligou, de um modo que exigia constante moderação, auto-controle, conduta sóbria, etc. Vivendo desta maneira, a tensão nervosa resultante já lhe provocava tiques nervosos e, por fim, a impressão de que vivia de sabotar-se.


Nos quarenta e cinco minutos que conversamos, foi possível fazer-lhe ver que durante toda vida anterior a seu estabelecimento como advogado, pôde praticar atividades que absorviam convenientemente sua necessidade de intensa excitação nervosa: pilotando, praticando arco-e-flecha ou algum outro esporte que exigia acúmulo de tensão e distensão abrupta. Quando assim vivia, mantinha suas coisas em ordem. Como não mais fazia isso, a necessidade de excitar o próprio sistema nervoso era tamanha que transformava coisas simples do dia-a-dia em ocasiões de alta tensão. Numa palavra, introduzia um caráter disputativo, atlético, em coisas não disputativas nem atléticas, uma vez que o componente artístico de sua vocação estava associado também ao deleite associado ao esforço muscular e tensão nervosa.


Tão logo isto ficou claro para ele, nos minutos em que conversamos, mencionou o desaparecimento dos tiques nervosos e o surgimento de tranquilidade interior, pela certeza de que simplesmente voltando a praticar alguma arte de que gostava (arco-e-flecha, por exemplo), a impressão de auto-sabotagem desapareceria de uma vez por todas. O que fez em seguida, os resultados positivos não se fazendo demorar.


Há pessoas que perturbam a si e aos próximos, quer dentro, quer fora da vida religiosa, porque desconhecem qual é a própria vocação e que exigências mínimas precisam atender para conseguirem atingir a sobriedade necessária ao convívio caridoso com o próximo.


Talvez nesta ignorância resida o fato de tantos católicos dedicarem tempo precioso de suas vidas criticando a Igreja, como se ela alguma vez pudesse errar nas coisas da fé, da moral e tudo o mais que compõe a vida do homem. Outros, investidos do papel de ensinar e celebrar Missa, transformam-nas em ocasião para atenderem suas exigências vocacionais naturais e acabam introduzindo o que está em desacordo com o que a Igreja manda.


Que Deus nos livre dos erros que podemos, por nosso próprio esforço, evitar.


Joel Nunes dos Santos, em 12 de março de 2011.

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