Neste artigo vou tratar ainda da virtude teologal da fé e não da esperança e caridade, como prometido no artigo anterior. Isto por uma boa razão: é adequado evidenciar mais ainda o sentido da oposição da fé à patologia mental que impele o homem a afastar-se da verdade e aderir ao erro por temor da morte.
A possibilidade de o homem, não somente individualmente mas também em grande número, manter-se inquebrantável na fé até a morte, é conseqüência da regeneração a ele proporcionada pelo sacrifício de Cristo cruz, o qual se renova em cada Santa Missa. As palavras de Cristo “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap. 21, 5), não são metafóricas. Ao contrário, são a expressão de uma realidade cujo primeiro testemunho foi dado por Ele próprio, ao ressuscitar dos mortos e, em seguida, pelos integrantes do primeiro Colégio Apostólico, ao serem todos eles martirizados sem vacilarem na fé. Todos morreram (com exceção de São João, que escapou miraculosamente da morte e morreu na ilha de Patmos, centenário) repetindo o mesmo, que Cristo ressuscitou, com ele conversaram e cearam. Vale a pena nos determos um pouco neste fenômeno inigualável, sem similar na história humana.
Esta demonstração de fé inabalável foi utilizada por Santo Agostinho como prova da ressurreição de Cristo. Diz esse santo, ainda que não com essas palavras, que nunca se testemunhou em toda a história humana que alguma convicção tenha sido afirmada integralmente, sem alteração, por duas, três ou mais pessoas quando ameaçadas de morte. Vamos a um exemplo historicamente recente.
Há um estado americano que foi construído em resultado da difusão de certa fé surgida nas primeiras décadas do séc. XIX. O fundador desta seita alegou a favor de suas convicções ter traduzido antigo manuscrito, após a ele ter sido conduzido por um animal fantástico que seguiu numa montanha. Em abono do fato de ter encontrado tal manuscrito, disse tê-lo mostrado a duas testemunhas, que juntamente com ele passaram a difundir a nova fé. Porém, como sua doutrina pregava a aceitação da poligamia, os defensores de tal fé passaram a ter problemas com as autoridades locais. Em resultado, as duas testemunhas, pressionadas pelas hostilidades a eles dirigidas, acabaram por capitular, renegando a fé que antes propagavam.
Fatos como este são comuníssimos na história humana. Raramente se encontram duas pessoas que afirmem o mesmo até morrerem, ainda que se tratem de homens invulgarmente inteligentes. Quando se estuda a vida e o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles, três homens que deixaram um legado intelectual capaz de ombrear-se com legados de outras culturas multimilenares, verifica-se o mesmo: Platão corrige Sócrates e Aristóteles corrige Platão. Ou seja, mesmo três grandes sábios não morreram afirmando o mesmo. Procurem-se outros exemplos em outras culturas que serão facilmente encontrados. Estenda-se a procura ao meio político, artístico, teológico, que um fato se impõe: dificilmente duas pessoas, ameaçadas de morte, afirmam o mesmo.
E é para este fato que Santo Agostinho chama a atenção, com argumento que ficou conhecido como “prova antropológica da ressurreição de Cristo”: todos os apóstolos que compuseram o primeiro Colégio Apostólico – o que não foi o caso de Judas, que morreu antes da fundação da Igreja – foram martirizados e morreram afirmando o mesmo: Cristo ressuscitou. Morreram afirmando o dado fundamental da fé cuja origem é sobrenatural. O apóstolo São Paulo disse “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã a vossa fé” (I Cor. 15, 14). Mas há mais coisa surpreendente neste acontecimento: o martírio dos do primeiro Colégio Apostólico foi coisa avulsa e não por atacado. Cada apóstolo já estava separado do outro no espaço e no tempo: cada um foi para uma parte diferente do mundo, distanciando-se dos demais por milhares de quilômetros e quando foram martirizados mais de vinte anos haviam se passado desde que se separaram, o que refuta a possibilidade de se alegar que “morreram dizendo o mesmo” por algum espírito gregário, por espírito de solidariedade, porque um apoiava ao outro, etc.. Não, estavam sozinhos e sem a possibilidade de checarem uns com os outros seus pensamentos e convicções. Deus lhes deu, para nosso bem, a sobrenatural vocação de dar testemunho de Sua onipotência de uma maneira “antropológica”. Deus, para dar a ver ao mais simples dos homens sua sua onipotência, criou um cosmo cheio de desproporção entre o tamanho, qualidade e valor das coisas – num ínfimo planeta, de um pequeno sistema solar, habita uma ínfima criatura que é a única criatura corpórea capaz de perceber a onipotência de Deus olhando para o tamanho descomunal de certas estrelas como Aldebaran, Betelgeuse e outras, para a regularidade do movimento dos planetas e demais coisas do mesmo gênero. Algo igualmente grandioso Deus fez no início da Igreja, desta vez não no plano das coisas inanimadas como os planetas e as estrelas, mas no plano do que diz respeito exclusivamente ao homem: vocacionou os do primeiro Colégio Apostólico a darem testemunho do feito mais impressionante já visto entre os homens. Como dito, nunca se verificou na História duas ou três testemunhas morrerem afirmando o mesmo quando fazê-lo põe em risco suas vidas. Mas então, que causa pode ter concorrido para levar doze testemunhas (sem falar nos incontáveis mártires que foram aumentando em número com o passar dos séculos) a serem martirizadas sem deixarem de possuir no coração a caridade e nos lábios a afirmação do mesmo: “Cristo morreu, ressuscitou, com ele conversamos e ceamos e por Ele morremos!”? Esta causa outra não pode ser senão uma causa sobrenatural, que é o próprio Deus cuja infusão na alma do homem a certeza sobre Si recebe o nome de fé.
Não é possível ver aí uma das evidências do sentido das palavras de Cristo-Rei “Eis que faço novas todas as coisas”? Cristo regenerou o gênero humano, Ele próprio sendo o primeiro a dar testemunho do que é este novo homem; Ele é o segundo Adão, o primeiro de uma geração de homens que dariam prova de que há um antídoto para a inclinação do homem de negar a verdade e em seu lugar afirmar a mentira. Este antídoto é a fé, porém fé em algo que é verdadeiramente real, em algo que é mais real que a realidade que nós próprios somos. Pois se vê, sim, ao longo da história, indivíduos morrendo sem negarem suas convicções, sejam elas políticas, militares, religiosas...porém, a certeza no Cristo, a esperança deposita nEle e a caridade que perdoa aos algozes, isto nunca se viu nem antes nem fora da Igreja que Cristo, Deus verdadeiro e homem verdadeiro, criou.
Nota-se na história cultural do homem que, por razões diversas, as gerações seguintes de grandes filósofos, artistas, etc., fazem reparos em parte do conteúdo da herança que absorveram. Porém, na Igreja, passam-se os séculos, mudam os ocupantes da hierarquia mas a fé ensinada permanece sempre a mesma, sempre resistindo a todas as intempéries. A permanência da Igreja na fé que foi encarregada de ensinar – para isso foi criada – testemunha o cumprimento da promessa de Cristo, que contra ela “as potências do inferno não prevalecerão”. Isto só pode ser assim porque ela é sobrenatural, cuja figura exterior é a de uma organização humana mas que, no seu acontecer histórico, comporta-se como organismo vivo e com mais complacência que coração de mãe; organismo que permanece afirmando o mesmo independentemente das mudanças pelas quais o mundo passe. O coração de mãe, ao ser complacente, falha em afirmar o mesmo sempre, a Igreja, à imitação de Maria, não falha: ela testemunha a obediência à Mãe de Deus, que disse “fazei o que Ele vos disser” (Jo, 2, 5).
Pois bem, a história dos da Igreja, dos santos padres e fiéis de todos os tempos é uma descrição da impotência da Síndrome de Estocolmo para com os que aderem “em espírito e em verdade” à fé que a Igreja custodia, que Cristo mandou ensinar.
Certamente é o testemunho dado pelas três crianças de Fátma, que resistiram à ameaça de perversão do espírito, fazendo substituir a verdade pela mentira. Mas é mais impressionante ainda o testemunho dos apóstolos, do primeiro Colégio Apostólico, porque foi o primeiro conjunto de indivíduos, na história humana, a constituir uma “evidência material” da realidade da expressão “Deus criou o gênero humano e Cristo o regenerou”. Quando os anjos viram Deus fazer-se homem, na noite de Natal, cantaram “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. Ora, quanto mais o homem se distancia da fé que Cristo encarregou a Igreja de custodiar, mais o homem torna-se carente de paz, não obstante os enormes prodígios que realize na área tecnológica, na cura de doenças, no provimento de alimentos numa quantidade nunca antes imaginada pelos mais notáveis pensadores.
Por este exemplo fornecido por Santo Agostinho, dá para ver que diferença enorme há entre a vocação natural e a vocação sobrenatural. Se a vocação natural provoca a emergência de indivíduos cultos, sábios, virtuosos, ela mesma é incapaz de dar testemunho de alguma fé que resista inabalável à ameaça de morte ou mesmo à passagem do tempo e mudanças das circunstâncias. Vimos isso no exemplo de Sócrates, Platão e Aristóteles, os criadores do que hoje conhecemos com o nome de “Filosofia”. A resistência ao tempo, às circunstâncias, ao medo, etc., é prerrogativa da vocação sobrenatural, que capacita resistir ao mal, amar e perdoar o agressor, tamanha e sobrenatural virtude abalando o coração do mais convicto e duro coração, como nos testemunham o episódio de Saulo de Tarso mandando apedrejar e matar Santo Estêvão. Este morreu perdoando-o, acontecimento que certamente pesou a favor de sua conversão. Que fé houve em alguma época capaz de rivalizar com esta que impele ao amor de caridade a ponto de nem mesmo a morte extinguí-lo? Somente a fé capaz de fazer surgir a esperança no que Cristo prometeu e, desta, o sobrenatural amor de caridade.
Possuo um amigo médico com quem convivi algum tempo, que me fez ver que para os profissionais vocacionados desta área ter fé é algo muito difícil. Pois só costumam aceitar o que funciona. Uma linda e articulada teoria não os convence da verdade de nada, a menos que ela venha acompanhada de indiscutível prova sensível. Daí parecer-me que os vocacionados à medicina são criaturas fortemente céticas. Acredito que somente provas como esta, a “prova antropológica” de santo Agostinho consegue ter força para criar uma brecha no ceticismo de pessoas como este meu amigo, hoje em dia católico praticante. A vitória inconteste sobre a Síndrome de Estocolmo pelo primeiro Colégio Apostólico elimina a possibilidade de alguém dizer, honestamente, que a fé não possui origem sobrenatural. Deus a dá a quem quer, e ela não depende do mérito de quem recebe. Por isso é dita “infusa”: é infundida, “introduzida” por Deus no coração de quem a possui – ainda que este possa perdê-la, caso não a cultive.
Assim como a vocação natural não é algo que se dê na personalidade para benefício do seu “possuidor”, mas para o benefício daqueles a quem servirá com o seu trabalho, a vocação sobrenatural é para testemunho da realidade do convite de Deus ao homem a uma vida real e eternamente feliz. A primeira das virtudes que a isto conduz, chama-se “fé” e o que se instala no coração de quem a rejeita, é o que recebeu na atualidade a denominação “Síndrome de Estocolmo”.
Joel Nunes dos Santos, em 5 de janeiro de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário